Manuel Alegre ⋅ Rafael (2003)
© Leon Zernitsky 'The flowers of love' |
"(...) Sim, quando me dei conta, eu estava na História, metido no verbo acontecer até ao osso, até ao avesso, até doer, eu estava na História e a História estava na vida e uma e outra estavam na escrita, nada sabia das tertúlias nem dos cafés onde ao fim da tarde descia o anjo, sabia das picadas e das minas, dos medos e dos mortos, dos nomes das mães das namoradas escritos na terra com o próprio sangue. Essa era também a minha letra, a minha caligrafia, a minha escrita.
(...) É então isto, a fronteira. Um salto e pronto, três metros, nem sequer isso, embora ao princípio me pareça um mar, três metros me separam do outro lado, Espanha ou outra vida, três metros, nada mais, três metros me atravessam, uma fronteira me divide.
Perderei o nome, os sítios amados, a areia branca, o cheiro do Atlântico do meu país. Sou eu e não sou eu. Uma parte de mim vai saltar, a outra não.
(...) Depois, de repente, ninguém. Tu próprio és ninguém, perdeste os sítios, o nome, a identidade, não tens a quem sorrir, a quem falar, sequer a quem perguntar se sabe onde podes dormir sem ter que mostrar o passaporte, não é sequer pergunta que se faça, não creio que alguma vez alguém tenha estado tão só, apetece morrer, Je est un autre, esse outro és tu, ó estrangeiro, eu próprio que já não tenho eu, perdeste a pátria, perdeste o nome, estás a perder-te dentro de ti mesmo."
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